O que explica o recorde de incêndios na Califórnia

Amelia sperb Por Amelia sperb 6 Min Read

Entra ano, sai ano, a temporada de seca na Califórnia, de julho a outubro, é invariavelmente marcada por incêndios florestais de grandes proporções. Desta vez, no entanto, o vigor das labaredas tem sido excepcional: o fogo já consumiu 800 000 hectares de florestas, área equivalente a cinco cidades de São Paulo, igual ao recorde de destruição registrado em 2018 — e isso no comecinho da pior fase, faltando ainda dois meses para as chuvas chegarem. No estado mais rico e populoso dos Estados Unidos, milhões estão sem energia e ao menos 3 800 imóveis foram incinerados. Só na região de San Diego, ao sul, 50 000 pessoas tiveram de deixar suas casas. Na quarta-feira 9, 15 000 bombeiros lutavam para conter 23 focos, sendo um deles — em um parque a 125 quilômetros de Los Angeles — iniciado por fogos de artifício azuis lançados no ponto alto de um chá de bebê para revelar o sexo da criança. A californiana Jenna Karvunidis, a quem se credita a invenção, em 2008, dessa comemoração que já causou outro incêndio, escreveu no Twitter: “Que tal parar de fazer essa festa estúpida e acabar com o problema de uma vez? Obrigada”.

Helicópteros militares foram acionados para resgatar pessoas encurraladas pelas chamas, em cenas dramáticas exibidas nas redes sociais. O inferno californiano este ano é alimentado por um verão de temperaturas muito acima da média, produto de uma onda de calor estacionada sobre o sul e o oeste dos Estados Unidos. Em Los Angeles, os termômetros cravaram 49 graus no fim de semana, um recorde. O escaldante Vale da Morte, no Deserto de Mojave, registrou 54,5 graus, a mais alta temperatura jamais medida com instrumentos modernos.

Incêndios são parte da natureza na Califórnia, onde a estação chuvosa se concentra no outono e no inverno. Com a vegetação ressecada durante boa parte do ano, basta uma faísca para o desastre acontecer. Além disso, o estado é varrido pelo chamado vento de Santa Ana, uma corrente de ar extremamente quente que desce do interior desértico rumo ao litoral e, em minutos, transforma pequenos focos em labaredas incontroláveis. Nos últimos anos, porém, os incêndios têm se intensificado em velocidade nunca vista, um fenômeno atribuído em boa parte ao grande vilão do meio ambiente, o efeito estufa.

Dos dez piores incêndios ocorridos na Califórnia, nove aconteceram depois de 2000. Ironicamente, bem-intencionadas medidas ecológicas têm parte da culpa: leis contra o desmatamento aumentaram a quantidade de árvores nas florestas, favorecendo o alastramento do fogo. Mas o estopim mais citado pelos cientistas para o fogaréu intenso dos últimos tempos é mesmo o aquecimento global. O verão da Califórnia está 2 graus mais quente do que há 100 anos, o dobro do aumento mundial. A área atingida pelas chamas anualmente é hoje cinco vezes maior do que há vinte anos, de acordo com estudo publicado pela revista científica Earth’s Future, e a temporada de risco está 84 dias mais longa. Este ano, outro fator determinante foi a multiplicação de tempestades de raios: uma delas, em agosto, despejou cerca de 11 000 sobre o entorno de São Francisco. “Os incêndios transformaram-se em um fenômeno incontrolável. Sob certas condições, são capazes de devorar o equivalente a um campo de futebol por segundo”, diz o ambientalista Mike Davis, autor do livro Ecologia do Medo.

O mesmo mecanismo que incendeia a Califórnia — e, em menor escala, os vizinhos Oregon e Washington — alimenta labaredas em outras regiões do planeta. No Brasil, este ano, 10% do Pantanal mato-grossense foi calcinado. Em pleno Círculo Polar Ártico, vastas regiões florestais da Rússia, Noruega, Alasca e Groenlândia queimaram nos últimos seis meses, emitindo 50 gigatoneladas de dióxido de carbono na atmosfera.

Do outro lado dos Estados Unidos, as águas mais aquecidas do Atlântico, e também do Golfo do México, estão produzindo furacões em quantidade e potência sem paralelo. Em agosto, primeiro mês da temporada que vai até novembro, o serviço meteorológico americano contabilizou dezessete tempestades tropicais, ante apenas três no mesmo período de 2019, e cinco delas evoluíram para furacão — entre eles o Laura, cuja passagem por Louisiana e Texas deixou 25 mortos. “A multiplicação de eventos catastróficos não é coincidência, mas, sim, uma inequívoca manifestação das mudanças climáticas em curso”, diz Park Williams, bioclimatologista da Universidade Columbia, em Nova York. É preciso agir rápido, de modo a frear a fúria da natureza e evitar que a situação piore ainda mais.

Publicado em VEJA de 16 de setembro de 2020, edição nº 2704

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